Prelúdio

Sentei-me à beira da cama, as pernas soltas, um pé tocando em ponta o chão.Ele , deitado a minha esquerda, parecia entreter-se com qualquer coisa no teto do quarto, qualquer coisa que eu não pudesse ver.Fixei-me na porta e senti meus pêlos eriçarem com um vento frio que me acertou a pele quente.Senti secar a garganta, a face empalidecer, os olhos marejarem.Acordei do transe assim que meu companheiro ensaiou levantar.Sentou-se como eu e em frente a mim , refletindo-me.O frio o atingiu também.
- Me dói pensar que ao sair por esta porta eu, talvez, hei de deixar também a tua vida- falei baixo, para não assustar o silêncio.
Ele sorriu, certamente por compaixão.Mas seus olhos não sorriram.Estavam tão mudos e quietos como todos os sentimentos dentro de si.Pude sentir meu peito solidificar, enrijecer, comprimir e expandir como um bloco de gelo.Olhos não são capazes de mentir.E não mentem.Talvez os nossos estivessem unidos por menos um minuto, mas senti passarem anos, décadas, milênios de uma tortura branda e infinitamente algoz.Desviei os meus para baixo, para minhas mãos pousadas imóveis sobre as pernas dele.Fugidia, fraca, apaixonadamente mórbida.Éramos duas estátuas meio vivas, meio sãs, meio amáveis.Duas criaturas que precisavam de outra criatura, e por que não ser um para o outro? Por que não havia de ser eu sua criatura? Meus olhos então voltaram a ler o ser que mais estimei na vida.Percorri os dedos tortos do pé, os joelhos, admirei a pele branca, os pêlos negros.As coxas, minhas mãos sobre elas.O sexo, o peito nu, o pescoço rijo, o queixo, lábios, dois riscos paralelos, e olhos.
- Feche os olhos - eu disse.
Ele os fechou, sem me questionar.Senti minha pupila liquefazer-se .Cerrei os punhos, aninhando os dedos lentamente na palma da mão.As mãos subiram fracas até tocar o nada, em mesma linha, como duas partes iguais, recém separadas.Então, as duas partes tocaram o rosto deste que era meu passado presente, a recordação de algo que eu vivia ainda, naquele exato momento.Os dedos soltaram-se e pousaram um a um na face , imóvel e insensível aos meus estímulos.Meu polegar percorreu suas sobrancelhas e o resto do trajeto até o queixo anguloso foi feito pelo indicador.Os quatro dedos voltaram, percorrendo as maçãs do rosto e os polagares uniram-se, tocando os lábios, afrouxando-os.Eram quentes e eu ainda me lembrava disso.Com o indicador, toquei-o entre as sobrancelhas e desci o espaço curto e íngrime do nariz, até fazer a subida e precipitar pela ponta.Foi então, com este meu despenhar, que ele abriu os olhos.
- O que você fez? - perguntou, fitando-me.
Senti crepitar o peito, a água fria cercando o gelo.Olhei seus olhos cristalinos e impuros, antagônicos de si e dos meus.Baixei a voz.
- Conhecendo teu rosto.- silenciei, preenchendo os pulmões-Desconheço forma mais terna e verdadeiramente humana de conhecer o rosto de alguém.Cada curva, cada pausa, o quente, o frio, o duro, a maciez.As formas, tramas, tensões, texturas.As tenras expressões, rudimentares impressões, o subjetivo ao toque da mão.Quero te ter sempre à mão dos meus pensamentos.Sempre.

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