Desencanto

Leve então
O resto desta ilusão
E todos os cuidados meus
Brinquedos dos caprichos

É pena porque foi tão lindo amar
Sentir você sonhar tão junto a mim,
Ouvir tanta promessa,
Fazer tanta esperança,
Pra hoje ver lembrança, tudo enfim

Nâo passou
De um triste desencanto, amor,
E desde então eu canto a dor
Que eu não soube chorar.

Chico Buarque

Alva

Não passa, não passou. A dor que me vela não descansa, não tem pálpebras, nunca desvia o olhar.Essa vigilância sufoca, amedronta, intimida, enlouquece.Cansei de insistir na réplica 'Estou bem, sobrevivo',com os olhos voltados pro nada.Os olhos da dor enxergam bem mais,chegam ao âmago d'alma, ultrapassam os limites da carne, do senso, da sanidade.Esses olhos que insistem em me fitar todo o tempo, que me vigiam pelo meu eu que vara madrugadas, escurecendo.Quero novos olhos à me vigiar, quero outra alma a me rodiar, quero outra vida, quero me invadir, me dar ou deixar ir.Não dormir, ou não mais despertar.

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Feliz Dia Internacional da Mulher! :)